quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Relógio não é tempo

Porque relógio você consegue mexer, ajustar a hora. Tudo depende de onde você está, geograficamente falando. Agora, tempo é coisa que não se ajusta. Tempo é, a gente vive, leva o cotidiano e vê o tempo passar. O quanto se aproveita, esta sim é a grande questão. "Como eu queria voltar no tempo para..." Inútil pensar assim. Ninguém volta no tempo. Teorias de viagem temporal com bom embasamento científico já existem, mas fiquemos no que, por ora, é possível.

Pensemos primeiro que, sim, o tempo é elástico. Ou você nunca teve a sensação de ter personificado o Flash em determinado período de sua vida? Que resolveu uma dezena de coisas em tempo recorde? O contrário também se aplica: me arrisco a dizer que não há sobre a face terrestre um ser humano sequer que, pelo menos uma vez, não tenha se rendido à procrastinação. Faz parte da natureza humana, melhor, da natureza animal a necessidade de descanso. Que pode, e em doses corretas, deve ser estendido. Se nem máquinas superaquecidas aguentam o tranco, o que dizer de organismos superaquecidos? E assim vamos vivendo, balanceando o sprint com o desacelerar. É assim que a banda toca.

Observado, então, o ritmo normal da vida humana, coloquemos agora, na salada do tempo, o tempero das necessidades (ditas) ideais nos dias atuais, do nosso mundo (dito) civilizado. Dinheiro, status, posses, fama... A perfeição da imagem. Mas não somos só imagem. Tal e qual uma fruta ou um legume não são só casca. Ainda que muita coisa boa esteja na casca, é na polpa que está o verdadeiro sabor. E essa busca frenética da melhor imagem pública facilmente nos empurra a diversas neuroses. Atropelamos o tempo para atingir algo que poucos no entorno apreciarão com sinceridade. E nessa busca, não é raro incorrermos em atos dos quais nos arrependeremos depois.

"Não me arrependo do que fiz, somente do que deixei de fazer!" Pensar assim é distanciar-se ainda mais da evolução enquanto ser humano. Que saiba ser humano. Somos imperfeitos, erramos. E arrependermo-nos de atos errôneos é um dos primeiros passos para evoluirmos. Dói... Cutucar a própria ferida é sinal de desprendimento. E num mundo tão apegado ao material, desprender-se demanda um esforço quase sobre-humano.

Aprenda que o tempo passado não volta. Mas o que ele deixou de aprendizado, pode ser eterno; um real legado, ainda que este só influa no seu entorno imediato. É apenas uma questão de saber colecionar esses ensinamentos. Porque a vida tem, sim, um livro de instruções. Mas esse livro é uma obra pessoal e intransferível. Que preenchemos com o passar dos dias.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

E o seu reflexo?

Na edição do último domingo, 10/11/2013, o jornal Zero Hora publicou uma extensa reportagem sobre todo o processo de redesignação sexual de Helena Soares Neves (anteriormente, Heleno). Primeiramente, gostaria de parabenizar os repórteres Larissa Roso (texto) e Bruno Alencastro (fotos) pela absoluta sensibilidade com a qual o tema e a protagonista foram abordados. Não sou jornalista, mas arrisco-me a dizer que essa foi uma das 3 melhores reportagens especiais feitas pelo jornal no ano, e certamente um ponto alto no currículo dos dois repórteres. Um tema complicado, haja visto que a questão da transexualidade ainda está cercada de muitos, mas muitos preconceitos medievais. Complicado também é pela natureza da questão, e do processo todo de redesignação sexual.

Proponho um exercício: esqueça um pouco a sua pessoa. A sua orientação sexual. Tudo aquilo que, em termos de gênero e persona sexual, você é (ou, até o presente ponto, crê ser, a vida prega suas peças). Visualize-se nu diante de um espelho, fitando sua genitália e demais caracteres sexuais. Agora, pense que, ao ver tal imagem, você simplesmente não se enxerga em essência. Ou, pelo menos, sabe que a casca não condiz com a polpa. O exterior não traduz o interior. Em suma, o corpo não encaixa com a mente. Sinta a tortura, desde a mais longínqua idade, de não ser o menino ou a menina que os pais (ou seja quem for, família não tem molde único) estão lhe criando para ser, porque, simplesmente, você sente que é o oposto (ou, como no caso de Helena, de início sentir que algo ali não está em sintonia fina, até descobrir o que realmente se passa, após muito sofrimento e dúvida). É uma prisão! E corações jovens correm livres, já se cantou. Uma alma com sede de vida não pode estar presa, ainda mais dentro de um corpo que não a representa.

Parte de um processo que tenho por filosofia de vida, o autoconhecimento, proponho um segundo exercício. Para este, similar ao anterior na execução mas diferente em propósito, peço que esqueça a questão do gênero. Foque nos seus desejos de vida, naquilo que você desejava quando muito novo, quando sua visão de mundo ainda não estava maculada pelos (naturais) acidentes de percurso e, ainda mais, pela ruindade inerente ao ser humano, que acaba por contaminar a todos nós (alguns mais, outros menos). O tema aqui é vida, história, biografia. Diante do espelho do tempo, a porção mais ingênua e pura de sua alma reconhece o que você se tornou? Será que o familar, o amigo, o cônjuge, o colega de trabalho que você é, de fato, traduz aquilo que você mais gostaria de ser? A maior parte das pessoas responderá "sim", é o reflexo defensivo do mundo adulto, onde temos que ser fortes e responsáveis por nós mesmos; admitir fraqueza e confusão não condiz com o homem ou a mulher "feitos".

Penso que a real evolução reside na diminuição, ou quem sabe até a ausência, de distância entre nossa mais pura essência e nossa imagem, seja ela a imagem que os outros têm ou a autoimagem, porque viver como um personagem não é nada produtivo e condizente com a evolução pessoal. E, claro, tudo isso alicerçado na busca constante pelo bem estar nosso e dos que nos cercam. Prejudicar a si ou ao próximo aumenta essa distância. E outro fator que aumenta essa distância é o transcorrer do tempo. Porque todo mundo quer ser "algo", vencer de alguma forma. Quando somos crianças e adolescentes, esse "algo" é preenchido por ideais e sonhos plenamente realizáveis. Mas os anos passam, e gradativamente vamos absorvendo a finitude da vida. E, ainda mais nos estressantes, neuróticos e plastificados dias atuais, tendemos a nos desesperar, a querer atalhar e, para tal, a criar cascas que não condizem com a polpa. Nunca é tarde para recuperar seu real sabor. Mas você só vai lembrar a doçura dele quando arriscar se descascar.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Seja Bem-Vindo


Bom dia, seu E.T. Tudo bem? Cansou muito da viagem? Então chegou ao lugar certo. Se tem uma coisa que nós entendemos por aqui é como receber visitantes de outras paragens. Haja visto nossos aeroportos, verdadeiros símbolos da organização e da infraestrutura apropriada, necessárias a uma nação de dimensões continentais. Não sei se na sua nave você trouxe algum veículo terrestre. Caso tenha trazido, pode ficar sossegado: nossa malha viária também honra o tamanho do país, com estradas bem construídas e geridas. Se não trouxe, podemos dar um jeito: nossos veículos automotores saem por preços módicos, condizentes com a realidade financeira de nossos habitantes. Ainda há a alternativa do transporte ferroviário, onde nós não cometemos o pecado de achar que se trata de um transporte obsoleto, típico raciocínio dos deslumbrados. E dentro de nossas cidades, transporte público não é um problema, pode ficar tranquilo. Privilegiamos o transporte de massa em detrimento aos veículos individuais, pois sabemos que um veículo de grande capacidade, novo e bem cuidado, carrega mais pessoas que apenas um automóvel. Aproveite e já arranje uma bicicleta, nossas cidades estão prontas para receber os adeptos dos meios de transporte limpos.

Como assim, “diferente”? Não tenha medo! Somos uma sociedade multicultural, multiétnica, aceitamos muito bem as diferenças. Nossas instituições públicas põem em prática os ditames da nossa Constituição. Nosso poder público é isento de influências estranhas ao Estado, como religiões e preconceitos históricos. Aqui, cada um tem a liberdade de ser o que é, e ninguém tem o direito de interferir na vida pessoal do seu compatriota. Temos uma Comissão de Direitos Humanos em mãos prontas para o cargo, mãos que sabem que somos todos merecedores da mesma atenção, cuidado e consideração por parte do povo em geral e das instituições. Eu arriscaria dizer, inclusive, que política é nosso forte. Nosso sistema partidário visa tão somente a manutenção do bem estar de nossos habitantes. Nossos políticos rechaçam gastos excessivos com seus gabinetes e pessoal, e expõem seus gastos sem subterfúgios burocráticos nem negociatas escusas a portas fechadas. Todas as atenções dos nossos caros políticos voltam-se à boa utilização do dinheiro público. Sabe por quê? Porque somos o país do futuro.

E um país do futuro precisa de habitantes saudáveis, claro. Saúde é uma de nossas prioridades. Desde o nascimento até a velhice, a preocupação do poder público é que cada um de nossos habitantes tenha pronto acesso à mais alta tecnologia na área da saúde, em instalações modernas e em número condizente com as pessoas que delas necessitam. Cenas de sofrimento em corredores de hospitais? Isso é pré-história. Aqui a vida humana é respeitada, como eu frisei antes. A vida valorizada constrói mais, trabalha com mais afinco, dentro das múltiplas oportunidades que se apresentam. Porque emprego aqui também não falta. Nossas engrenagens sociais proporcionam que aqueles que querem dar emprego possam fazê-lo sem ser excessivamente onerados em seus custos. Os benefícios aqui visam sempre a base da pirâmide: um povo produtivo e bem assistido faz uma nação poderosa.

Nossa educação pública é de excelente qualidade, pois temos a certeza de que um povo bem instruído é a espinha dorsal de uma sociedade que visa um país igual para todos. Um povo instruído sabe analisar bem o andar da sociedade, sabe julgar o que é correto ou não. Sabe comprovar no dia-a-dia que está tendo seu dinheiro bem aplicado. Sabe analisar tudo o que é publicado na imprensa, tomando as atitudes corretas e protestando pública e homogeneamente quando sente que seus direitos correm o risco de serem usurpados. E isso tudo se reflete no cotidiano, pois o cidadão comum multiplica esses valores, comportando-se com lisura e honestidade com o próximo. O clima é de confiança total, tanto que segurança pública não é uma preocupação extrema por aqui. Como temos um povo instruído, vivendo numa sociedade bem constituída, com emprego para todos e serviços públicos de alto padrão, poucos são os que se veem coagidos e forçados ao crime. Aqui, todos têm as mesmas chances de vencer.

Te disseram o quê? Que estamos destruindo nossa natureza? Que cobramos os governantes, mas não aplicamos nossas demandas no cotidiano? Que sempre queremos tirar vantagem em tudo? Que estamos nos agredindo em função de credos pessoais? Que aceitamos passivamente os absurdos institucionais porque nos jogam “brioches” midiáticos? Okay, você venceu. Não mandei chegar aqui num Primeiro de Abril.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Pobre Conceito


A televisão segue com sua programação veiculada pelas vinte e quatro horas do dia, e no que tange a TV aberta, está deveras difícil fugir da mesmice. Mas, de tempos em tempos, ocorrem verdadeiros divisores de águas. No último dia 03 de fevereiro, foi ao ar uma entrevista de Marília Gabriela com o Pastor Silas Malafaia. Em bom português, um embate da sabedoria com a ignorância, para dizer o mínimo. Esse senhor usou as principais armas daqueles que não têm como explicar o que pregam: argumentos furados, inválidos e distorcidos, todos esbravejados em alto tom de voz. Mamãe sempre disse: “quem grita, perde a razão”. Foi um festival de agressões à comunidade LGBT, diminuindo todos nós atrás de palavras falsas de amor ao próximo; neste aspecto, inclusive, o senhor Malafaia teve a pachorra de dizer que ama os homossexuais como ama os bandidos. Conforme circulou na internet, isso seria amor próprio (em qual das duas partes ele se encaixa, eu deixo a escolha ao leitor, afinal a homofobia, muitas vezes, é negação de si mesmo).

Me indignou a entrevista, como a milhões de outros brasileiros. Me indignou porque sou gay, porque faço parte de uma minoria há séculos perseguida, que está conseguindo razoáveis avanços sociais à custa de lutas hercúleas; lutas essas travadas contra a justiça ainda em algumas instâncias retrógrada, contra a hipócrita sociedade brasileira, contra argumentos recheados de ódio das partes mais fundamentalistas do universo cristão. Mas me indignou principalmente porque foi uma demonstração do mais irracional preconceito. O preconceito é um câncer que carcome as sociedades, seja ele de qual espécie for. Não faltam provas históricas para tal.

Holocausto Nazista. Perpetrado pelo bárbaro regime de Adolf Hitler, consistiu em perseguição e extermínio sistemáticos de determinados grupos, onde sobressaem-se os judeus, mas também incluídos os homossexuais (há séculos perseguidos, como disse acima), ciganos, intelectuais do Leste Europeu, pessoas com deficiência mental e física, entre tantos outros. Baseado em alguns conceitos odiosos, dentre os quais se destaca o da eugenia (na sua variante nazista, a purificação da dita raça ariana), Hitler liderou uma cruzada que culminou em carnificina.

Inquisição. Comandada pela Igreja Católica, consistia de várias instituições que deveriam combater ideias contrárias aos dogmas de tal religião. Qualquer tipo de objeção, e não só as religiosas. Tinha motivações políticas e econômicas, também. Mas, nas trevas medievais, era fácil enquadrar alguém como herege. Era, basicamente, apenas uma questão de acusar e, muitas vezes, inventar argumentos. A grosso modo, instalava-se um tribunal, e o acusado muitas vezes era condenado à morte, normalmente de forma cruel.

Apartheid. Regime de segregação racial, com suas primeiras demonstrações datadas do período colonial, mas que vigorou oficialmente em meados do século XX na África do Sul. Com argumentos de proteção da minoria branca, após as eleições gerais de 1948, o eleito Partido Reunido Nacional implantou várias leis que trataram de literalmente dividir e lotear, em espaços específicos, o território sul-africano para brancos, negros, de cor (mestiços) e indianos. Mais que isso, foi uma forma de proteger, com políticas abomináveis, os interesses da minoria branca. Quem estivesse fora desta minoria tinha serviços públicos (educação, saúde, transporte et cetera) de pior qualidade, espaços separados para a circulação, desamparo jurídico, restrições profissionais (empregos que poderiam obter), além de tantos outros absurdos.

Dei apenas, repito, apenas três exemplos. Mas a história da humanidade está recheada dos mais deploráveis exemplos de preconceito, e de toda a dor que ele causa. De todo o sofrimento, a exclusão, a escuridão que ele impõe a quem o sofre. O preconceito nasce no medo do que nos é estranho. E aí entra o fator educação, esclarecimento. Mas não é somente a educação formal, científica. É a educação da alma, do aceitar o próximo como um igual. O preconceito nasce na patética necessidade que o ser humano tem de rotular aquele que, na sua visão, não faz parte do seu grupo. Porque um rótulo não é uma identificação de um grupo. Um rótulo é um julgamento. Existem grupos de interesse comum na humanidade, claro. Isto é uma parte saudável da natureza humana. Pessoas que gostam de um determinado tipo de música se identificam. Pessoas que torcem por um determinado time esportivo se identificam. Pessoas que possuem um determinado credo religioso se identificam. Interesses em comum. Mas o seu interesse é apenas diferente do interesse do outro, dentro da mesma espécie de interesse. Não é melhor nem pior. É diferente, e só. Você tem que respeitar isso.

Convivemos todos os dias com o preconceito. Inclusive, mesmo as mentes mais abertas e livres incorrem em algum preconceito, aqui e acolá. Mas há de se fazer um esforço para eliminarmos toda e qualquer forma de ódio do nosso dia-a-dia. É um exercício de contágio, eu diria. De mostramos que não é certo odiar o seu semelhante humano por fatores tão pequenos, tão bestas. Pare de apontar dedos, e olhe-se no espelho. Você tem uma determinada cor de pele, mas aquele que tem uma cor de pele diferente da sua é da mesma espécie (esqueça essa baboseira de raças). Você crê em uma determinada religião, mas aquele que segue outra religião tem o mesmo direito que você de segui-la livremente. Você gosta de fazer sexo com o gênero oposto, mas aquele que gosta de fazer sexo com o mesmo gênero tem o mesmo direito que você de expressar sua afetividade. A humanidade só evolui quando agrega. Quando segrega, se destrói. De boas intenções, o inferno está cheio. O que determina, no final, o repúdio ao preconceito são os bons atos. E os bons ensinamentos. Porque preconceito é coisa que se ensina, se multiplica. Se você parar de dizer que funkeiro é bandido, aos poucos esta postura se dissemina ao seu redor. Assim funcionará com tantos outros burros estereótipos: o gay promíscuo, o roqueiro toxicômano, a modelo anoréxica, o seguidor de religiões afro praticante de magia negra, a loira burra, o baiano preguiçoso... Rótulos, julgamentos estúpidos. E julgamento não se faz senão na esfera judiciária, obviamente. Embasada em preceitos legais, que prezam a igualdade. Porque somos iguais. Independente de cor de pele, religião, sexo, orientação sexual, nacionalidade e naturalidade, idade, classe social. Enquanto espécie, volto a frisar: que paremos de apontar dedos, e olhemos mais para o espelho. No momento que nos preocupamos mais com como somos para o universo que nos cerca, melhoramos para o universo que temos dentro de nós. Algo lhe parece diferente? Não ouça a palavra de ódio que algum acéfalo da cercania provavelmente vomitará. Pare, observe, conheça. O estranho só é estranho quando está lá; quando chega aqui ou quando vamos até ele, vira mais um de nós. E a união, além de adoçar a vida fazendo açúcar, faz a força.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cacos


Você ganha um belo vaso, exemplar raro da dinastia Aquela-Mesma. Você o quis, talvez; ou ainda pode tê-lo ganho por acaso. Mas desenvolve um apreço gigante por aquela linda peça decorativa. E você ganha elogios por tão belo item que adorna tua morada. E você desenvolve ainda mais apreço, pois as palavras inflam o teu ego, fazem com que você se sinta sempre bem em função daquele item que embeleza tua existência.

Mas aí as coisas começam a ficar engessadas. A casa prestes a ruir, nada mais no entorno importa, somente o belíssimo vaso. Parado, cada vez mais gelado (e congelante), mas belo. Porque te dizem que é belo. Porque você um dia achou belo (ainda que, entre quatro paredes, com a cabeça deitada no travesseiro, você já não veja mais tanta beleza). Mas a beleza da reputação dele é a sua beleza, ao menos é o que dizem.

E a casa caindo... E o mundo acinzentando... Mas o vaso está lá. Até que sobra você e o vaso. Belo vaso. Lindíssimo vaso, não é o que sempre te disseram? Beleza ofuscante. Ofuscou tua vista. Te botou uma tapa de cavalo, não mais olhou para os lados, porque é um belo vaso. Um Sol no teu céu. Mas o Sol cega se muito o mirares.

Antes da cegueira, as lágrimas, abundantes. A dor, lancinante. E você, num átimo, num acesso de Rainha de Copas louca por decapitações, decide: é hora de quebrar a porra do vaso! Foda-se sua beleza! Foda-se a beleza que todos dizem que ele tem! Agora ele te é horroroso! E você quer apreciar belezas de novo... Que venham novas belezas.

Cacos de um vaso... Restos de uma beleza... Morta beleza, feita em pedaços. Mas uma percepção segue íntegra: a de que beleza não tem um só conceito. Não tem só um jeito. Beleza é o imperfeito. O estranho, torto, esquisito cotidiano. Beleza é você, é eu, é tudo. É tanta coisa. Tantos vasos. Talvez um vaso de barro, simples. Mas se ele te é belo, isso que importa.

É Para Sempre


A dor da perda de alguém. O “nunca mais”. Frio, sem fundo, e definitivo. Talvez a dor que o ser humano melhor saiba dissecar, que o digam os escritores, os músicos, os desconhecidos que puxam papo conosco... E o propósito destas linhas é dissecar uma perda mesmo.

A perda de um familiar é uma situação deveras específica. Cada família tem a sua dinâmica, as suas afinidades particulares (brigas igualmente); mas família a gente não escolhe. Família é multiformatos, cada um tem o seus conceitos de “família” e “parentes”, cada perda depende de cada relação, de cada... família. Já perdi familiares amados, sei como cada dor foi. Mas o que perder um tio foi para mim, por exemplo, pode não ser a mesma coisa para você. Vamos largar a hipocrisia e confrontar a verdade: amor incondicional é só de pais para proles, e ainda assim há exceções.  Não vou me arriscar, por absoluta ignorância, na questão da perda de um filho. Vi com uma de minhas avós (que já não está mais aqui, aliás) o quão devastador isso pode ser. Mas se não sei o que é ter um filho, não tenho sequer como me aproximar do que venha a ser perder um.

Amor é um assunto mais complicado; eu acho que é como um sequestro, que só vai em frente, quando vai, devido à Síndrome de Estocolmo. Nos apaixonamos por quem nos raptou (e que tão bem sabe apertar nossos botões, na sequência correta). Portanto, recuperar-se da perda de um é processo particular. Mal ou bem, a gente acaba arranjando outro, se quiser. Fica um buraco no peito, pode ser que nunca mais se ame da mesma forma; tenha falecido ou não, um amor perdido deve ser tratado como tal, em nome de sua própria saúde. Amor envolve sexo, suor, lágrimas e juras infinitas. Com tanta troca assim, cada um processa a perda como quiser: manifestações artísticas, farras etílicas, “passadas de rodo” históricas, isso e muito mais, e tudo regado a muito chocolate.

Agora, perder um amigo... Quem perde um amigo, perde um universo (de regras particulares, diga-se). Porque amizade verdadeira também começa com um “Big Bang”. Essa eclosão, esse momento de gênese, pode ser um brinde entre duas tulipas de chope geladíssimo, pode ser uma gargalhada conjunta depois de um comentário extremamente irônico no local de trabalho, pode ser tanta coisa... Já disse Aristóteles: “Amizade é haver uma alma em dois corpos”. A amizade fraterna envolve um pouco daquela química da paixão, só que (a princípio, “cadum cadum”) sem o sexo. É um encaixe de alma. Um encaixe que, como disse acima, constrói um universo. E são vários universos, feito um multiverso, que perfazem o que chamamos de “roda de amigos”. Uma roda de liberdade, troça, um pouco de anarquia e muito carinho. Quem já morou longe de sua terra sabe o quão família uma roda de amigos pode se tornar. Com o tempo, aprendemos quem são os nossos reais amigos (em especial quando os ventos não são favoráveis; aí sim separamos o joio do trigo).

E perder um amigo, principalmente um irmão de alma, é perder o lado físico de algo que você construiu a quatro mãos, em igualdade de condições, sem hierarquias e sem obrigações pré-existentes. Uma convivência voluntária e pacífica que, em seu mais metafísico aspecto, foi um produto do acaso. Facilitado por circunstâncias, pode ser, mas que foi uma colisão de vidas. Somos sete bilhões de cabeças neste planeta, quase duzentos milhões só em nosso país. Criar um verdadeiro vínculo de amizade é, acima de tudo, uma bênção. Família em primeiro lugar, ao menos para mim; amor tem o seu próprio lugar (conforme o desenrolar, claro). Mas amizade, essa sim, é “o” lugar. Lugar de rir, chorar, beber, dar Coca-Cola quando a coisa pegar, dar bronca, dar dica, comprar briga, ganhar visão de mundo e, acima de tudo, aproveitar a vida.

P.S.: Ainda bem, não perdi nenhum grande amigo recentemente. Mas um amigo querido acaba de perder um amigo-irmão, e é para ambos que dedico estas palavras. Além de dedicá-las ao “figuraça” Maurício, irmão de alma que, há sete primaveras, está zoando com todo mundo em alguma nuvem, alguma estrela lá em cima; e que para sempre será lembrado como alguém que veio aqui para mostrar que é alegremente que se leva a vida.

Tanta Coisa Boa

Sol. Lua. Coca-Cola. Jujuba. Dinheiro esquecido no bolso da calça. Mousse de maracujá. Piscadela. Matar aula. Cabelo ao vento. Cafuné. Música que te faz sorrir. Música que te faz chorar. Mensagem de texto. Mensagem no mural. Pular muro. Subir árvore. Manga no pé. Massagem no pé. Pé na jaca. O primeiro beijo, e o segundo, e o terceiro, etc. "Saudade que eu estava de ti...". Bolinho de chuva, com açúcar e canela. Comidinha da mãe...e do pai (o meu arrasa!). Filme pastelão 80's. Minisséries. 7ª série. O colegial inteiro. Aniversário de 18 anos. Todos os aniversários. Meus e de quem amo. Churrasco com salada de maionese e vinagrete. Caviar. Champagne brüt. Pastel de feira. Feira do Livro. Livros, livros e mais livros. Cores. Sons. Perfumes. Dançar no quarto, sem ninguém olhando. Dançar na pista, com todo mundo olhando. Abraço. Carinho. Docinho de festa de criança. Ser criança. Para sempre. Salário. 13º. Ganhar na loto. Ganhar flores. Ganhar experiência. Pagar mico. Sozinho ou em grupo. Segredo de amigo. Amigos. Irmãos. Amigos-irmãos. Vó. Vô. Pai. Mãe. Mãe Natureza. Cachoeira. Praia. Pôr-do-sol. Cerveja gelada. Provolone à milanesa. Milão. Paris. Frankfurt. Toda a Europa. Todo o mundo. Você. Eu. Você e eu. Com uma vida inteira pela frente. Andar em frente. Ligar a seta. Botar o cinto. Não correr demais. Com o carro e com a vida. Vida louca. Vida quieta. Vidão. Pernas pro ar. Ócio. Trabalho. Conquista. Ser conquistado. Namorar. Transar. Gozar. Fumar um cigarro logo após. Parar de fumar. Respirar. Espreguiçar. Escovar o dente. Pedir a benção. Conversar com o Papai-do-Céu. Céu de brigadeiro. Neve caindo. Edredon quentinho. Dormir com chuva. Acordar com café na cama. Suco de laranja. Com um pouquinho de vodka e muito gelo. Jogar gelo dentro da camisa de alguém. Rir. Curtir. Paquerar. Amar. Amor-próprio. Casa própria. Ou alugada. Mas a sua casa, o seu canto. Canto de pássaro. Bichinho de estimação. Lambida no rosto. Lambida onde quer que seja. Com ou sem chantilly. Morango com chantilly. Merengue. Rumba. Salsa. Cebola. Alho. Pimenta-biquinho. Biquinho, pra dar selinho. Beijo de boa-noite. Beijo de bom-dia. “Bom-dia! Uma média e um queijo quente, por favor.” Dia quente, na piscina. Dia frio, em qualquer lugar. Lugar dos sonhos. Sonhos. E realidades.